segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Um pouco de Autobio




Forse non riuscirò a darti il meglio...

Mas ninguém adoece do nada. Freud fala em estrutura e cristais que quebram. Não sei se é a melhor descrição do processo, mas algo na imagem do cristal rachando me atrai. A rachadura acontece nos pontos de maior pressão, quando as defesas não dão mais conta e a resistência se quebra. Não sou nenhuma expert de psicanálise (nem simpatizo muito com a abordagem), mas é esse o meu entendimento do que aconteceu.

Posso dizer que fui uma criança-cristal bonitinha, cheia de vida, promessa e alegria. O começo dessa criança poderia ser o encontro de seus pais, mas para mim não é. O meu começo surge aos poucos, com memórias cheias de névoa em volta, mas altamente significativas.

Elas remontam a dias constantemente ensolarados e a uma menina loira que sempre estava com um vestido florido. Não é uma memória romantizada, pois morávamos em Lima, Peru, onde a palavra “chuva” não existia. Eis a parte do sol. Filha de um americano legítimo meus primeiros cachos esbanjavam minha carga genética. Eis a “loirice”. E finalmente, minha mãe conta que eu escolhia um vestido para usar e não tirava mais até ficar encardido. Aí escolhia outro... Eis a parte dos vestidos. 

Como deve acontecer com todo mundo, não sei o quanto que minhas lembranças longínquas são lembranças mesmo ou histórias imaginadas em cima de fotos. Seja como for, a sensação que ficou foi a desse sol eterno. Tudo era quente, confortável e saudável. Nessa época, nasceu minha irmã e meus pais viveram o auge do casamento deles. Eu era uma borboleta que flutuava no meio de tudo isso, sempre cercada de amigas, festas e brincadeiras.

Depois de três anos, voltamos para os EUA e lá vivemos mais um ano. Aos meus sete anos a família peregrinou de volta para o Brasil, ao pedido desesperado de minha mãe. Brasileira de samba, carnaval e sol, o inverno emocional e climático da Carolina do Norte era rígido demais para ela.

Assim pai, mãe, filha e bebê foram parar no Planalto Central, em uma cidade recém nascida chamada Brasília. Mais uma escola, mais uma casa, mais uma vizinhança, mas era ainda pequena demais para sentir o choque da mudança. Acho que seria a última mudança indolor daí pra frente.

Poderia adentrar nos detalhes de nossas vidas no cerrado estranho, nas fronteiras de Brasília onde não existia nem farmácia. Poderia contar dos meus pais e o projeto de construir o hospital veterinário, a nossa nova casa e a nossa nova vida. Mas o que quero contar é das muitas tardes após a escola passadas brincando nos montes de areia de construção, das aventuras que eu vivia na selva do cerrado e de minha crescente tendência a me isolar nesses mundos fantásticos.

Claro, eu ia à escola, tinha amigos, amigas, mas nunca mais foi a mesma coisa que tinha sido alguns anos antes. Talvez fosse a distância da minha casa do resto do mundo, ou a minha dificuldade inicial com o português que nunca fora minha primeira língua. Só sei que meus colegas pareciam viver em realidades tão diferentes da minha! Desde então muito dona-de-mim, decidi não me preocupar com essa discrepância e continuar vivendo da maneira que sabia. Acho que meus pais não se atentaram a essa mudança sutil em mim, pois estavam muito ocupados com seus planos e construções. Se perceberam, acho que pensaram que não era nada permanente, pois eles sempre me conheceram como a criança-borboleta e talvez achassem muito improvável algo acontecer que mudasse isso.

Esse pedaço da minha vida durou um outro ano e sem que eu tivesse percebido qualquer coisa entre eles, meus pais decidiram se divorciar. Hoje, olhando para trás, me pergunto se era realmente possível eu não ter percebido nada mesmo, nem uma briga, um olhar atravessado, um clima hostil. Não entendo bem desses mecanismos que a mente tem de ser preservar de situações difíceis, mas pode ser que eu bloqueei tudo mesmo.

Foi tudo muito rápido, muito limpo e ordenado, algo que estabeleceu o molde de como tudo seria daí em diante e como eu também deveria lidar com as circunstâncias (calmamente, racionalmente e pronto!). Eles sentaram comigo após a única briga que lembro e me explicaram a situação:
- Papai e Mamãe vão se separar, Papai não vai morar mais aqui, mas não quer dizer que ele não te ame, a gente vai se visitar o tempo todo, etc....
E eu, como uma menina-moçinha bem madura e razoável entendi tudo e até me lembro de ficar consolando meu pai. Tudo bem, Pai, eu vou ficar bem, não se preocupe. E foi assim... Ele partiu e não me lembro nada desse dia, não sei como foram os meses seguintes em casa sem ele. Não me lembro da reação da minha irmã...

O que lembro mesmo são as mil e tantas viagens que vieram como conseqüência de tal separação internacional. Era um tal de buscar pai no aeroporto, deixar pai no aeroporto, ir para o aeroporto de mochilinha, passaporte, irmã mais nova e meu coelho de pelúcia, o Bunny. Transbrasil, Varig...Um tal de despedidas, chegadas, despedidas, chegadas. Rapidamente essa rotina de rupturas foi se tornando a parte mais temida do ano. Nessa época, com oito, nove e dez anos, as partidas de avião eram partidas no meu coração, mas era uma dor que tinha que ser, pois era obrigação minha como filha-moçinha-madura-e-razoável ir visitar o pobrezinho-do-meu-pai-que-estava-tão-sozinho-em-outro-continente. Na verdade nem sentia como obrigação, mas sim algo que filhos fazem, devem fazer, pois os pais fazem falta e nós sentimos sua falta.  Ou mais simplesmente, era a vida e ponto final.

Aos dez anos, foi a vez do meu pai de ter-nos morando com ele. Foi meu primeiro ano fora sem ser de férias, vivendo mesmo nos EUA. Também foi meu primeiro ano sem minha mãe. Foi nesse ano que os EUA em si começaram a ser equiparados com trauma e não a viagem-despedida-chegada. Sentia uma falta absurda da minha mãe, chorava como uma condenada quando voltava das férias do Brasil e quando minha mãe ia embora de suas visitas. Chorava de ódio daquela situação, ódio de não ter opção, ódio de estarem levando minha mãe.

Foi nesse ano que engordei os quilos que iriam me acompanhar odiosamente pelos próximos anos. Olhando assim depois de muito tempo, vejo que foi o ano em que aprendi a criar uma barreira em volta de mim, barreira de introspecção, de ser estudiosa, de ser responsável, de ser tudo que os outros desejavam de mim, mesmo antes deles mesmos saberem. Aprendi a ser um sucesso entre os adultos que admiravam minha maturidade, inteligência e perspicácia. Ao mesmo tempo aprendi a esconder meu sofrimento, pois precisava continuar sendo forte, madura. Não podia preocupar meus pais já tão preocupados por si só. Ao mesmo tempo consegui descontar muito disso num acting out poderoso com a nova namorada (e logo depois, noiva) do meu pai. Foi a única situação em que não era uma menina super madura e adorável. Fui o inferno na vida dela e não entendia porque não conseguia me controlar, sabendo do sofrimento que causava. Tinha os sentidos aguçados para captar todas suas carências e sensibilidades e conseguia levá-la na palma da minha mão, fazendo tudo que eu queria para depois dispensá-la ou desprezá-la. Depois eu chorava, chutava, mas nada demais foi feito, meu pai até parecia se divertir com o desespero que ela vivia comigo. 

 Aprendi a ser um enigma para meus colegas de escola, alguém que não pertencia ao mundo normal de ser criança. Só deixava entrar no meu mundo quem eu sentia estar no mesmo barco que eu, talvez num movimento de projeção e identificação. Acolhia essas pessoas que, como eu, sofriam com as conseqüências de serem responsáveis e maduros demais e as amizades eram profundas e de alma.

A inocência da infância definitivamente havia passado.


Eventualmente voltei para o Brasil e chorei de ódio de ter que deixar meu pai. Além disso, tinha que viver com a revolta da minha mãe dos meus quilos a mais, como que meu pai havia permitido? Onde estava a filha linda dela? Oficialmente se instalou meu complexo de ser patinha feia, gorda e socialmente um caso perdido. Nem gringa nem brasileira. Nem lá nem cá.

 Daí pra frente cada viagem foi um choro constante de ódio. Claro que não entendia ser ódio na época. Para mim era somente tristeza, saudades... Mas ao mesmo tempo sabia que esses sentimentos não faziam jus à força do sentimento e choro que vinham. Cada primeiro dia em cada país pedia tanto de mim, um ajuste total no meu cérebro. Um dia estava na casa do meu pai com o tapete, a televisão em inglês, o cereal com leite de manhã e historinhas na hora de dormir e no outro estava na cozinha azulejada da minha mãe, comendo pão francês, presunto e queijo diante de uma televisão que coloria a sala azul com o Jornal Nacional. Uma hora atrás escutava aquelas vozes sérias no noticiário no carro do meu pai em inglês (good ol’ NPR) e agora escutava a Fátima Bernardes me desejar uma boa noite simpaticamente em português (“O Jornal Nacional termina por aqui, boa noite”). Essas mudanças bruscas faziam e ainda fazem girar minha cabeça.

E assim os anos passaram, uma viagem de avião atrás o outro. Fui me familiarizando com o ciclo de dor, adaptação, bem-estar, insegurança, dor e aprendendo a me resignar a ele. Não tinha como escapar, por mais que eu inventasse estratégias para me enganar, como cantar minha música predileta ou fingir que era uma astronauta em uma missão super especial. As brincadeiras não me protegiam da tortura do ir e vir e lembro de como era amargo perceber isso, como uma traição odiosa. “Ontem a gente combinou que ia dar certo, lembra? Que não haveria lágrimas, que os pontos da cicatriz tão custosamente fechada não se abririam nessa explosão de dor!”.

Não me ocorria dizer nada aos meus pais, pois eu acreditava que iria criar mais problemas. Não entendia que havia opção nisso tudo. 

Acho que foi por isso que, entre as viagens, vivia de forma mais esquiva possível de qualquer coisa que me trouxesse ansiedade. Já que podia fugir, fugia. Então fugi ainda mais dos colegas, de uma vida social. Refugiava-me nos estudos, me tornando aquela aluna brilhante que mencionei antes. Refugiava-me nos fundos do hospital veterinário que era nossa casa, cheio de personagens que compunham minha estranha família. Era veterinário, funcionário, empregada, mãe que passava voando pelos corredores pra lá e pra cá. Refugiava-me nos meus passatempos de pré-adolescente solitária. Não tinha T.V. a cabo então o auge do meu dia era assistir os noticiários e as novelas e, eventualmente, Globo Repórter! Um luxo, uma conquista, conseguir ficar acordada até depois da novela! Desenhava, escrevia, lia e inventava projetos tais como pintar meu quarto ou observar os clientes com seus animais na recepção enquanto minha mãe ia e vinha no frenesi de sempre sem tempo nem energia pra estar comigo e minha irmã. Mas claro, eu entendia e nunca cobrava. 

Não é de surpreender que as línguas fossem algo fácil pra aprender, dado todo o contexto multicultural e internacional no qual estava imersa. Além do pluralismo da minha família e dos países onde havia vivido, tinha o fato de que as amizades que eu fazia eram, "curiosamente", com as crianças que viam de outros países e continentes, filhos de diplomatas que constantemente alçavam vôo para novos lugares. Semelhantes se atraem, mas apesar de ser parecida, minha situação era tão diferente! Em primeiro lugar, eles viajavam juntos, não se separavam. Eles não tinham raízes falsas (na época achava que eram falsas, hoje entendo mais como raízes quase que voláteis, transplantáveis, bifurcadas...complexas!) como as minhas, que eram arrancadas a cada quatro meses, mais ou menos. Suas viagens eram aventuras, protegidas pelas asas dos pais. As minhas eram empurrões em um vazio da atmosfera, a milhares de metros sobre qualquer proteção. Trocávamos histórias e pesares de viagens e readaptações, mas rapidamente me dei conta que estávamos falando quase que em dimensões diferentes e isso aumentava minha solidão.

Mas pelo menos eles sabiam o que era falar mais de uma língua em casa, invernos com neve, ter conhecido diferenças culturais na pele e a sensação de ter que se despedir de pessoas queridas... Pelo menos eu tinha uma turma mais ou menos normal, com conversas, brincadeiras e brigas de meninas pré-adolescentes. Nunca falei para ninguém sobre minha vida particular-emocional e o peso que as viagens estavam tendo sobre mim. Confessar isso seria confessar não ser uma boa filha, não gostar de “viagens de férias” e de todos os delites que elas achavam que a vida nos EUA oferecia. Seria ser estranha e anormal, então me calei.

Então me calei.

Isso me leva ao post "1999", onde a história continua...

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