quarta-feira, 21 de abril de 2010

2005 Breakdown # 3




Não tenho nenhuma pretensão literária nesse daqui. Vamos direto ao assunto.
Muito difícil explicar a sensação que passa um diagnóstico psiquiátrico.
Março, 2005
Relatório Médico
IdeIdentificação: nome, filiação, naturalidade, data de nascimento, estado civil, escolaridade, residência. (deduzam)
Histórico: Paciente com história de transtorno mental há cerca de 3 anos e meio, caracterizado por humor depressivo-ansioso, tendência auto-punitiva, insônia, baixa auto-estima, negativismo, sentimento de desesperança, fragilidade emocional, idéias obsessivas, comportamento e atitudes compulsivas, rigor consigo mesma, idéias de morte e de auto-extermínio, idéias de culpa.
Já fez uso de Cloridrato de Peroxetina, Cloridrato de Sertralina, Divalproato de Sódio e Clonazepam.
Iniciou acompanhamento nesta clínica 16/12/2004, estando no momento em uso de Fluvoxamina – 100mg – 1 comp/8h e 2 comp/20h, Amitriptilina – 25mg – ½ ou 1 comp se insone e Bromazepan – 3mg – 1 comp/dia – SOS.
HD: F33, F42
De repente você não pertence mais a você, de repente, existe alguém que tem mais autoridade no assunto que você achava que tinha. De repente, você não se reconhce mais.
De repente, toma, aqui seu papel, aqui seus números.

É. Complicado, estou tentando entender porque tive a vontade de tratar desse assunto carregado de tamanha vulnerabilidade de forma tão escancarada.
Eu odéio esse relatório, primeiro. Foi em 2005, uma das piores épocas da minha vida, época que me faz mal revirar, me faz mal lembrar. Mas é o monstro no porão que não vai desaparecer só porque eu não gosto de falar dele. E as vezes parece que, quanto mais eu o ignoro, mais força lhe dou, no sentido de que vira algo tão importante que preciso gastar muita energia para evitá-lo. Entende?
Chega desse drama, desse peso. Quero acender a luz no porão, quero abrir a porta, e deixá-lo sair.
Em outubro, 2005, a coisa estorou de forma contundente e mais uma vez eu estava em umas das piores situações que já me encontrei. Foi no nível e intensidade da primeira crise (2003 e isso é outra história), mas desta vez tive que caminhar, mesmo com as pernas quebradas.
Os fatos situacionais: segundo semestre da UnB tinha sido interrompido por uma senhora greve e me desesperei diante da prospectiva de milhões de dias pela frente sem absolutamente “nada” a fazer. No meu desequilíbrio, decidi fugir para os EUA mais uma vez, como tinha feito aos 14, acreditando que aquilo seria a salvação. Fui cegamente menos de uma semana depois de tomar a decisão ignorando os sinais de alerta que já tinham virado sirenes. STUPID IDEA, STUPID IDEA, please reconsider!
Tinha programado ficar dois meses e acompanhar a greve de longe. Se terminasse antes, voltaria. Mas...
Queria contar como é sentir-se completamente crua, com a alma ferida exposta aos urubus da percepção distorcida, do pânico e o sentimento de total desamparo. Porém, dessa vez, estava longe dos meus recursos brasileiros, longe dos amigos, longe da minha casa, longe...com meu pai, que não tinha a mínima idéia de como me ajudar, apesar de se esforçar bastante. Dessa vez, não tinha a Vanessa para me acudir, me atender ao telefone e espantar os urubus nem que fosse por uns segundos.
Queria pode descrever o que é chegar ao fundo do poço...e depois afundar mais cem metros – não tem como explicar para ninguém o terror que sentia ao acordar de um sono perturbado e perceber que tudo que tinha abandonado no dia anterior ao adormecer não tinha sumido, continuava ali, me esperando...Um terror que fazia torcer o estômago, que fazia expulsar qualquer coisa que podia estar lá dentro em vômitos doloridos, que drenava toda e qualquer força que meu corpo e mente podiam ter recuperado aquela noite. Já começava o dia fraca, tendo que lutar contra um exército de horas sem fim...sozinha. Sozinha. Sozinha.
Acordava, chorava. Tomava Rivotril, me enrolava em 3 cobertores e me afundava em meio de travesseiros e bichinhos de pelúcia no sofá e me acalmava, sentindo o Rivotril chegar ao cérebro e tomar conta dos comandos. Falsa segurança, porém melhor que nada. Para mim, o Rivotril adiava meu desespero mais um pouquinho, me dava mais alguns minutos de alento para que outro dia pudesse passar e que eu pudesse sobreviver. Acordava do entorpecimento e chorava. O terror nao ia embora de jeito algum.
Aqui alguém pode perguntar, mas medo do que? O que aconteceu de fato, o que justifica tanto mal-estar? Não sei. Não sei. Era tão real quanto essas mãos que vos digitam, mas só eu sabia da ameaça, só eu testemunhava a presença, mesmo sem conseguir dar nome. Me sinto mal, tentava explicar para meu pai. Meu corpo dói, eu acho que vou morrer. Dad, I can't explain, but believe me.
Esforcei-me por ele. Tentei realizar os programas que ele bolava para nós, na ânsia de que eu aproveitasse minha visita. Tentava forjar ânimo. Entrava no carro, mas logo depois começava a chorar sem controle, pois as árvores pareciam me encurralar, as vozes no rádio pareciam me invadir e até perseguir. Para sair do carro era outro problema, lágrimas corriam intensamente mais uma vez. Acho que a palavra TERROR está até fraca para explicar. Em essas situações pegava o Rivotril na bolsa e secretamente enfiava um pouco na boca, para que meu pai não visse minha fraqueza total. Claro que ele via meu desespero, via meu choro, via meu pânico. Não tinha nem como não ver, cheguei a sair correndo de um restaurante para vomitar no estacionamento. O auge da humilhação e do abandono da tentativa de manter alguma imagem diante de qualquer pessoa. Me sentia um fracasso e uma decepção total.
Às vezes eu pedia para que ele me pusesse no colo, simplesmente, e me deixasse chorar. Lembro da cara de perplexidade dele diante do meu pedido. Meu pai nunca foi dado a assuntos muito da psiquê, o forte dele era a praticidade, o agir. Deus, como ele tentou me levar na onda da ação e praticidade!
Ele me levou a uma psicóloga, a uma psiquiatra, a Boston, a teatros, passeios de carro, ao cinema...Tentou arranjar aulas de arte, de psicologia e até trabalho, mas eu finalmente criei coragem para dizer a ele que tudo aquilo era desperdiço, pois eu precisava mesmo era ir embora. Então ele consentiu, muito tristemente, em adiantar minha passagem para o mais cedo possível e voltei para o Brasil.
Onde nada mudou.
Não sei como eu fiz para não pirar completamente. Tinha um senso de responsabilidade tão grande com minha família, especialmente com minha mãe, de que eu não poderia fazer isso novamente com eles. E, num ato de perfect timing, minha mãe decidiu mais uma vez cancelar seu apoio financeiro para terapia e assim, do nada, perdi o que parecia ser o último fio que me mantinha presa à Terra.
Parece que essa virada no destindo me deu o desespero suficiente para se tornar uma fé de mover montanhas. Nessa época me virei tão fortemente para os céus, travei um diálogo constante. Disse para Deus que aceitava o que estava acontecendo, aceitava e iria fazer de tudo para sarar, mas só se estivesse amparada 24/7 por Ele. Foi assim mesmo, negociação de igual para igual. Tinha que acreditar que por pior que eu me encontrasse, sempre teria um anjo ao meu lado que não permitiria que eu fosse aniquilada. Em um ato contratual, desenhei esse anjo e grudei com fita durex na parede ao lado do travesseiro.
Então eu saía de casa contra toda minha vontade. Contra todo instinto de preservação que eu tinha de me enfiar na cama, no meu forte de cobertores, na minha droga entorpecente do sono e esquecimento. Realmente não sei como, procurei um emprego numa escola de inglês e consegui! Uma vitória sem nenhum senso de vitória, pois significava acordar cedo, enfrentar o monstro do terror, a torção de estômago, o gosto do vômito, para depois ir dar aula para alunos que esperavam coisas de mim. E de alguma forma eu consegui fingir, por uma hora e meia cada terça e quinta, que eu era uma pessoa normal e não um corpo ambulante quase caindo aos pedaços. Deus do céu...eu entrava no elevador do prédio e dizia para o homem lá de cima “Segura minha mão! Estou confiando em você! Só por isso estou saindo, viu?!” Segura minha mão para que eu não desmaie no meio do caminho, para que eu não comece a chorar no meio da aula, para que eu não desista do meu primeiro empregozinho...”
Morria de vontade de pedir socorro para alguém físico, encarnado, mas não via como. Eu não tinha dinheiro, tinha perdido a paciência, acolhimento e convivência cordial com minha mãe e não queria envolver pessoas em um processo de dependência e de preocupação por mim, já havia feito demais disso. Além disso, no fundo eu sabia que ninguém poderia entender. Acho que foi algo que tinha que ser.
Eu literalmente, cruamente, nuamente e solitariamente, atravessei o inferno. Um dia após o outro, uma hora após a outra, foi assim que caminhei.
Assim, chegou dezembro, que levou a 2006. Eu recuperada, com um psiquiatra conseguido por meio de um plano de saúde que minha mãe havia feito, medicada, o ano letivo retomado e minha vida num pique que surpreendia. Estava dando aulas de inglês e tinha tornado às aulas de italiano pelas quis tinha absoluta paixão. Consegui juntar dinheiro para retomar a terapia em fevereiro, sem ter que depender da aprovação de ninguém.
The End por enquanto. The End dessa historinha ai, de 2005.
Por isso que há coisas que hoje só podem fazer sentido nesse contexto de tudo que se passou para que hoje chegasse da forma que chega. É difícil para mim quando vejo que posso falar e falar e descrever e que vai ser visto como "depressão", "pânico", "transtorno mental". Puta merda. NÃO. NÃO. Isso explica alguma coisa?? Isso dá a dimensão do que é passar por algo parecido? Faz o contrário, simplifica, classifica e banaliza, até.
Foi um milagre, isso sim. Por isso louvo os dias que passam e me mostram a força que aprendi a ter. Agora consigo acreditar nessa força e dar-lhe o crédito e respeito que merece. Muita coisa, muita mesmo se transformou e eu sei que não tem como voltar a ser como já foi. Amen.

Um comentário: