Mais um texto comprido e sem pretensões.
É assim: escrevo desde os 12 de forma comprometida e vital. Ou seja, tenho material guardado de muito tempo e tenho muito a contar, muito a dizer. Há palavras que imploram para sair, pulam na barra da minha saia, por favor, por favoooor!
Como a intenção desse blog é organizar algo desse mar de palavras e história, aqui vai mais um pedaço dela.
1999
Decidi passar mais um ano letivo nos EUA aos treze anos, mais para fugir da minha realidade difícil do que vontade mesmo de estar lá. Eu tinha me metido numa enrascada na escola e em casa que meus pais não faziam idéia. Aconteceu que eu encontrei alguém com a qual, pela primeira vez na vida, não precisava me calar e esconder meu sofrimento de todos aqueles anos de final de infância. Foi a professora de artes, a Ms. V, uma jovem mulher de trinta e poucos anos que criou um carinho por mim instantaneamente e se maravilhava com meus dotes artísticos. E, claro, eu achei aquilo o máximo. Admirava muito ela, seu jeito criativo, engraçado e sensível.
Aos poucos a admiração virou obsessão pura. A nossa relação professora-aluna foi sendo destorcida por insistência minha e passei a atormentá-la com minhas angústias. Eu era uma esponja seca de carência, qualquer pessoa que se aproximasse que, na minha fantasia, pudesse me entender, perceber meu desespero e me cuidar era automaticamente sugada para meu amor e idealização obsessiva.
Para garantir que ela ficasse por perto, fiz de tudo. Dava presentes, escrevia poemas, encantava, agradava. Logo depois levei a história para outro nível: falava que queria me matar, falava que ouvia vozes, escrevia cartas mórbidas e depressivas. Não era por maldade ou vontade de enganar, mas é que eu fui percebendo que aquilo chamava a sua atenção, uma atenção tão genuína. É claro que estava sofrendo, mas não era exatamente aquilo que eu escrevia ou falava. Eu sentia aquela angústia com uma intensidade assustadora e a única maneira que encontrei foi aquela para que fosse justificado pedir tanto. Não sabia dar nome aos bois, não sabia dizer que eu quebrava por dentro com a cobrança de ser madura e responsável o suficiente para tanta coisa, com o silêncio que pesava em cima de tudo. Aos meus olhos, sofrer por isso era bobagem. Só sabia que sofria, mas não sabia dizer por quê. A solução foi me expressar com “liberdades artísticas”.
Enfim, acabei assustando a pobre professora até ela chegar a ponto de me pedir que eu parasse de lhe escrever, alguns anos depois.
Nada disso foi contado à minha mãe ou ao meu pai. A única outra pessoa que ficou sabendo do meu caso doentio com a professora foi a psicóloga da escola, trazida para a história pela própria professora que pediu ajuda. Vergonhosamente ia ao seu consultório na escola nas sextas feiras. Fiquei furiosa com a Ms. V por ter me denunciado e ter me abandonado nas mãos daquela intrusa que queria que eu falasse com minha mãe. Aliás, a condição de continuar a vê-la seria contar para minha mãe. Recusei-me veementemente e nunca mais voltei.
A verdade é que eu tinha gostado muito da psicóloga. Ela tinha um jeito manso de falar, fazia perguntas que ninguém me tinha feito antes e aquele ambiente era tudo que eu desejava. Mas meu pavor de contar qualquer coisa para minha mãe foi maior do que a necessidade do bem-estar. Contar para minha mãe que tinha acabado no consultório da psicóloga da escola seria admitir que havia acontecido muitas coisas que tinha escondido dela e também que eu não estava dando conta da situação de vida que ela e meu pai haviam criado. Seria como culpá-la por algo que não era sua culpa e eu, menina-moça madura e razoável, nunca poderia fazer tal acusação. Se eu tivesse percebido que não se tratava de acusações, mas de um pedido de socorro e que não era responsabilidade minha proteger meus pais das minhas dificuldades, talvez tudo tivesse ocorrido de forma diferente. Mas enfim, não foi assim. Foi o início de um abismo cada vez crescente entre eu e minha mãe, abismo horrível de mágoas e desentendimentos.
No final do ano minha professora iria embora. Fiquei sem chão, sem saber o que fazer. Não queria e não podia continuar na escola sem ela, sem minha irmã que já estava nos EUA, sem uma mãe com energia disponível pra mim e com minhas amigas volúveis. Suas preocupações, conversas e brincadeiras me entediavam, irritavam e me faziam sentir horrivelmente longe do mundo. Enquanto eu pensava na morte, na angústia sem nome do meu ser, elas falavam de N’Sync e do último episódio de Dawson’s Creek. Tenho certeza que elas passavam por suas dificuldades também, mas elas se entregavam ao processo de ser adolescente. Eu sentia ódio daquelas conversas idiotas, tinha ódio que não tinha nada de interessante pra dizer, de me sentir falsa ao mostrar interesse pelo que elas tinham. Tinha ódio de a minha querida professora ter me rejeitado. Nesses ódios decidi que minha solução estava em passar um ano com meu pai. Com certeza as coisas seriam diferentes, numa escola diferente, pessoas diferentes... Sim, era a única solução.
Nem preciso dizer que não foi a solução. Resumindo, passei quatro meses chorando sem parar, sem conseguir me adaptar à nova escola e fazer novos amigos. Sentia uma falta tremenda da Ms. V, do Brasil, da minha mãe. Nesses meses desenvolvi o sintoma que iria marcar toda crise daí para frente, a turbulência intestinal que resultava em dor de barriga e ânsia de vômito. Era isso toda santa manhã de tão nervosa que ficava. Passava o dia chorando pelos cantos sem conseguir controlar as lágrimas, tudo era puro terror. Não sabia onde estava nem onde me enfiar. Assim que saía da escola já ficava em pânico pensando que teria que voltar no dia seguinte. Fiquei em um estado horrível, até que meu pai decidiu me levar à psicóloga da escola. De novo.
Dessa vez não recusei. Sabia que precisava de ajuda urgente. Não conseguia comer, pois o cheiro da cantina me dava náusea e nunca conseguia ter apetite pra almoçar. Não conseguia me importar com o que vestia, minha vaidade estava no lixo. Tinha certeza de estar diante da minha morte. Não conseguia interagir com meus colegas, pois o único pensamento que tinha era de como sobreviver o dia até chegar em casa e como iria passar o resto dos dias durante um ano até poder voltar para casa. Casa – um país tropical onde não fazia o frio infernal que fazia naquele estado de Vermont esquecido por Deus. Onde estavam minhas amigas vivendo seus dramas de 1º ano de highschool, me arrependi de achá-las idiotas, dava tudo pra voltar para aquelas conversas no recreio. E eu ali, em Vermont, numa escola que fazia os alunos descascarem cenouras e limparem fezes de vaca, pra não dizer palavrão...
Não fiquei muito tempo com essa psicóloga, mas com certeza foi um grande fator que contribuiu para minha reviravolta alguns meses depois. Depois de algumas conversas ela falou que para continuar o trabalho teríamos que falar com meu pai para que fosse no consultório dela fora da escola. De novo entrei no módulo “não-posso-passar-isso-pros-meus-pais”, tinha um medo enorme dele ficar bravo comigo, de eu estar com frescura. De falhar. Aquilo serviu de pontapé pra que as coisas melhorassem. Me abri. Comecei a fazer amizades, amizades de verdade que me traziam calor ao coração e até satisfação de estar onde estava. Encontrei mais uma professora... E quase repeti a mesma história de antes. Foi ela que conversou comigo e disse que não se sentia confortável e preparada para lidar com aquilo que estava lhe dizendo. Ironicamente, ela me mandou de volta para a mesma psicóloga do começo do ano. Recusei-me a ir, morrendo de vergonha e de ódio de ter feito aquele papelão de novo. Jurei para mim mesma nunca mais, nunca mais, nunca mais, deixar esses sentimentos de carência obsessiva tomarem conta de mim. Ou no mínimo, nunca mais me permitiria expressá-los por alguém.
O ano foi chegando ao fim e novamente me vi na situação de adeus. Adeus pai, adeus todas as amigas que tinha feito, adeus àquela vida que finalmente havia encontrado um equilíbrio, por mais frágil que tenha sido.
Voltei diferente para o Brasil. Voltei mais confiante, voltei mais social, mais engraçada, faladeira. Se fui capaz de fazer o melhor daquele ano lá em Vermont, voltar pra velha E.A.B. era fichinha, moleza! Tinha re-despertado uma versão da Maya-borboleta que sabia encantar as pessoas e fazê-las rirem. Os brasileiros da escola começaram a prestar atenção em mim, deixando de me considerar tão nerd como antes. Continuava sendo nerd, mas uma nerd legal (um salto enorme na nossa hierarquia social). Finalmente, depois de tanto tempo, fui reconhecida como brasileira e não mais a gringa desengonçada. Com quinze anos, comecei a me vestir de acordo com minha idade. Após muitos anos de sentir-me uma nômade, finalmente comecei a me sentir em casa, dentro e fora de mim.
A essa altura, lembrem-se que havia se passado anos de pânico-em-aeroportos, anos de fascinações torturantes por professoras que não me correspondiam da maneira que eu idealizava (que seria mais ou menos me adotando e raptando pra casa delas), anos de dificuldades com minhas amigas e anos de me sentir feia, gorda e rejeitada. E absolutamente nada disso tinha chegado ao conhecimento dos meus pais, ou quase nada. Quando tinha que chorar, era no escuro do meu quarto na hora de dormir; era no escuro do avião segurando o Bunny contra meu peito; era um choro que nunca era entendido pela revolta que continha.
Vivia uma vida secreta, cheia de tumultos emocionais e dramas de alta categoria e outra vida pública, como a filha, irmã e aluna exemplar, inteligente, madura e sensível. Incrível. As duas vidas não cruzavam seus caminhos jamais.
Eis que chegamos então aos dezessete anos, diante da grande encruzilhada da vida pós segundo grau, momentos antes do Grande Breakdown #2. Alguns meses antes de adoecer, as duas vidas se chocaram em um momento surreal para mim. Uma tarde minha mãe virou para mim e simplesmente perguntou se gostaria de fazer terapia. Fiquei chocada e aliviada tudo ao mesmo tempo. Até que enfim, até que enfim, ajuda.
Nenhum comentário:
Postar um comentário