terça-feira, 13 de julho de 2010

Éramos três



Clack clack clack clack....

Do meu quarto, levanto a cabeça de algum livro e fico de orelhas alertas.
O som aumenta e chega ao corredor.
Clack clack clack....

"Mãeeeee??"

"Oi!?", vem a voz do outro quarto.

"Vem cááááááá!!"

Clack clack clack clack....Ela está na minha porta.

"Que foi, tem que ser rapdinho, tô no meio de uma consulta."

"Nada...só queria dizer oi."

Ela sorri e consente alguns segundos de seu tempo para vir dar um beijo.

E assim como veio, vai...clack clack clack. Volto ao meu livro. 

Tenho 8 anos. Tenho 9. 10.11.12.13.14... Os clacks que anunciavam a presença de minha mãe deviam sempre ser checados, pois presença não queria dizer necessariamente disponibilidade. As vezes não dava para parar na porta e dar um beijo. Muitas vezes era pressa ou crise ou estresse. Mas a gente sempre esperava o momento em que podíamos gritar: "Mãeeeee?".
Era a maldição e a benção de morar no mesmo lugar que era o local de trabalho dela.  Sempre estava ali e nunca sabíamos se realmente estava.

Eu tomo muito cuidado ao falar da minha infância com minha mãe. Tomo extremo cuidado para não passar o clichê de filha esquecida nem o de mãe que vivia para o trabalho. Defendo minha mãe e o que ela teve que fazer com unhas e dentes mas sei que fui uma das mais prejudicadas, junto com minha irmã. E, claro, sem falar da minha própria mãe. Após o divórcio do meu pai, minha mãe se viu diante do desafio de criar 2 filhas pequenas e uma empresa recém-criada que estava em plena expansão, no auge dos anos de carreira e realização profissional. Os 3 bebês eram interdependentes, pois para manter-nos no Brasil com ela, o combinado era que ela deveria poder ter condições financeiras de nos mandar a escolas americanas e poder viajar para visitar meu pai, além de pagar a dívida com ele pela compra do terreno e os custos da construção. Sufoco geral. 
Tomo muito cuidado, mas não posso esconder que é algo que me entristece e que ainda dói. Confesso que não sei como fazer as pazes até hoje pois ainda é uma ferida aberta.

Éramos três; três em quantias flutuantes, pois os anos passados com meu pai dividiram nosso tempo juntas. No começo de sermos três, éramos uma criança, uma bebê e uma mãe solteira. Eu sendo a criança. Morávamos no meio do nada no que hoje é um dos bairros mais afluentes e caros de Brasília. Mas na época, não havia asfalto, supermercado, farmácia ou linha telefônica. Era nós, a terra e o cerrado. Quando não estava na escola, estava inventando a próxima aventura na nossa terra única. Não conhecia as Superquadras e SHIS's dos meus colegas, nem sabia que existiam. Tínhamos espírito de pioneiros e é com certa saudade que eu lembro da época em que batalhávamos contra as tempestades de verão com baldes e panos tentando aplacar as goteiras e das velas que iluminavam muitas noites sem luz. Lembro até hoje da sensação de fazer meu dever de casa a luz de velas no balcão da cozinha. Era nosso lar, cheio de figuras além de nós três que o compunham - uma mistura de veterinários e funcionários que integravam a recém nata e rapidamente famosa Animax. Era família. 
Talvez eu tivesse tido mais facilidade de me resignar a ausência presente de minha mãe do que minha irmã por ter 8 anos e ela 4. Eu tive a presença dela nos meu anos de bebê e agora tinha um orgulho e apego feroz a ela e tentava lhe deixar em paz para que ela pudesse trabalhar e, inevitavelmente, poder descansar também. Quase não saíamos nos fins de semanas, sair de lá para ir no shopping era um evento e tanto, pois tínhamos nossa mãe só para nós. Sem dizer que sempre era sinônimo de compras. Na sua exaustão o que ela tinha para nos dar vinha do que o dinheiro podia comprar. Quando conseguíamos convencê-la de sair para alugar um filme e assistirmos todas juntas, também era um festival. Pipoca e tudo que tinha direito. Quantas vezes, porém, o meu coração partia ao toque do telefone que a chamava para ajudar com algum problema lá no hospital. Eu tinha vontade de gritar quando isso acontecia mas aquela parte madura e sensata falava mais alto "você tem que entender!" e em vez de amargurar, tentava desamargurar minha irmã que não conseguia ser tão "legal" quanto eu. As vezes conseguia distraí-la e envolvê-la no filme e depois em alguma brincadeira.
Muitas vezes não.
E aí eram birras e birras sem fim. Choro, raiva, gritos, mordidas e portas fechadas a estouros. Acho que uma chegou a quebrar. Tinha medo das birras da minha irmã e das reações da minha mãe. Tentava proteger as duas. Tinha raiva da Laisa por não conseguir entender e também da minha mãe por também não conseguir entender. Acho que as birras eram tantas que não deu tempo nem espaço para eu ter uma minha. Seria o cúmulo, duas filhas tendo petis ao mesmo tempo. Ainda mais eu, a mais velha...tinha que ver o comportamento da minha irmã e achá-lo infantil. Eu teria que servir de contraponto nisso tudo, algo que todo mundo não parava de enfatizar: olha como a Maya é madura, gente, é um anjo, é uma sorte danada que ela veio primeira...A garota dos olhos de todos. Que sorte que você não dá trabalho! 

Quando eu "dava trabalho", era causa de espanto. Eu tinha muitos medos, mas como vivia praticamente entre a escola e a ilha deserta que era minha casa, nunca vieram a tona com muita clareza. Além do mais, minha mãe parecia se orgulhar do fato de que eu só queria estar com ela, como se fosse um testamento à nossa relação leal e parceira. Minhas mini-crises eram vistas mais como "ah, está com saudade do pai", ou "ah, está com saudade da mãe", pois comecei a ter crises de choro em volta das viagens que se apresentavam pelo menos 4 vezes por ano indo e vindo dos EUA. Uma vez, quando voltei a Brasilia depois de minhas férias no meio do ano, estranhava tudo de tal forma que não conseguia parar de chorar. Devia ter 9 anos, não lembro, ou 11? Minha mãe sempre reagia da mesma forma: "quer que eu te faça algo gostoso para comer?" Aquela noite em particular ela me deu um pão com presunto e queijo, lembro direitinho como a promessa de que aquele pão teria poderes mágicos caiu aos pedaços. Comi aquilo com gosto amargo e pensei, isso não tira a dor do meu peito. Mas ela acredita que vai tirar, ela quer que eu acredite nisso. Então chorava o resto que tinha que chorar no silêncio do meu quarto. Em algum lugar dentro de mim sabia que minha mãe não dava conta e que eu tinha que dar um jeito de convencê-la de que ela me ajudava, só para não piorar a situação.

Alguns anos depois, o pão virou um calmante. Toma minha filha, toma isso, vai melhorar...Eu sei, eu sei que no mais fundo do coração dela ela queria me ajudar, mas essa era a forma que ela conhecia. Mal sabia eu que ela já usava medicação da pesada havia anos, remédio para dormir, remédio para acordar, remédio para dor, etc. Ela não sabia se cuidar, não sabia como cuidar de emoções, como ensinar a suas filhas? Ao mesmo tempo absorvia a culpa que ela exalava, sem entender. Tinha tanto cuidado para não fazê-la sentir culpada, tanto cuidado de mostrar que estava bem para não aguçar sua culpa. Incrível o que captam as crianças. 
Tomava essas pílulas com raiva também, me sentindo traída em algum sentido. A mensagem era clara ao meus sensores de não-dito: é melhor não sentir essas coisas. Ao mesmo tempo o velho refrão: não dou conta de te ajudar mas te dou o que posso. 

Então, aprendi a não mostrar ao máximo emoções de medo, tristeza, raiva. Não mostrar choro, não pedir colo. Pior de não ter colo é pedir um colo e não encontrar nada reconfortante nele e ter que pedir para sair. Claro, que as vezes não dava conta e saía do quarto banhada de lágrimas e pedia ajuda. Aí ela fazia algo "gostoso para comer" ou então um chá de erva cidreira. Para mim, esse chá tem o gosto de choro até hoje.

Hoje em dia, quando estico a mão para alcançar o Rivotril, juro que lanço olhares de fúria para aquela garrafa. Não é você que eu quero mas é você que eu tenho. Te odeio mas você me cuida. Te odeio, você entende isso? Eu vejo minha mãe em mim e quero jogar o vidro pela janela, quero jogar em um buraco que vá até o fim do mundo e cuspir em cima. Quero dizer para minha mãe que existem outros jeitos, mas no final eu também fiquei meio analfabeta das emoções e fico queita para não ser a hipócrita que pede para que ela pare de depender disso mas ao mesmo tempo carrega um na bolsa. Tento me convencer de que não é a mesma coisa. Mas tenho minhas dúvidas.

Clack clack clack....

"Mãeeee??"
"Oi!?"
"Vem cá!!"
clack clack clack....
"Me põe pra dormiiiiiir?"
Ela sorri e caminha até a cama, puxa o cobertor em volta de mim. Pega o Bunny, meu coelho de pelúcia e o coloca ao meu lado. Hoje ela tem um pouco de tempo. Ela deita na cama do meu lado, encolhida para que caibamos as duas. 
"Posso ficar um pouco com você?"
Ela se deita e me desespero ao perceber que ela adormece. Não sei o que tem de demais, mas seu cansaço e comforto na minha cama me incomoda tremendamente. Me assusta de um jeito que me faz sacudí-la.
"Mãe, mãe..."
"uuuh"
"Você tá dormindo..." (ou seja, por favor, vá dormir na sua cama)
"Ok, boa noite minha filha"
"Boa noite".

É melhor assim.

Sinto falta de minha mãe de forma abismal.

Bunny...quantos choros você acalmou. Eu te abraçava e pedia, por favor, make it stop, make it stop....E quando eu me cansava e acalmava na ressaca pós-choro, te agradecia - thank you bunny, thank you...
Você foi meu filhote, meu amigo, confidente e com seus olhos profundos e sábios, foi a presença onipresente que precisava. 

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